Opinião

Responsabilidade

I. Depois da conquista normanda da Inglaterra, em 1066, Guilherme I ordenou a elaboração de uma listagem – os Domesday Books – de todas as propriedades privadas do reino. A iniciativa tinha um duplo objetivo: por um lado, era um instrumento centralizado de gestão fiscal, mas, por outro, funcionava também como forma de garantir a fidelidade política dos seus proprietários. Os senhores tiveram, pois, de dar conta das suas possessões ao seu superior e passaram a fazê-lo, de forma cíclica, daí em diante. A este processo chamou-se então accountability, conceito que possuía, desde a sua origem, uma vertente quantitativa predominante, mas que também presumia, desde logo, a ideia de responsabilização dos agentes perante o detentor do poder. A emancipação da ideia de accountability das suas origens contabilísticas é um fenómeno anglo-americano e data, grosso modo, das décadas finais do século XX, tornando-se, primeiro, num instrumento para favorecer a eficiência e a eficácia da governação pública e, numa fase posterior, num ícone da boa governação, ligado a considerações de justiça e ética. Em democracia, quem representa tem a responsabilidade de prestar contas a quem delega o poder. II. Numa época em que cidadãos possuem melhores níveis de formação e informação, estando, por isso, mais capacitados para procederem ao acompanhamento da atividade política, exigirem maior acesso às decisões e exercerem maior controlo sobre o seu cumprimento, o papel dos media no aumento da exposição dos agentes políticos e no reforço da capacidade do ativismo cívico é inegável. Em consequência desta alteração, os governos e demais instituições públicas viram-se pressionados a aceitar novos canais de responsabilização externos à orgânica do próprio sistema político e a conceder ao sistema mediático uma dimensão inevitável de fórum público de debate e apuramento de responsabilidades. III. É por isso que nos tempos que correm os mecanismos de apuramento de responsabilidades próprios da arquitetura político-constitucional de um determinado sistema político não são suficientes. Mais do que em qualquer outra fase da história das sociedades democráticas, nos dias de hoje a responsabilidade daqueles que assumem cargos eletivos define-se e joga-se sobretudo de modo informal, por ação dos meios de comunicação social e à custa de uma exposição e de um escrutínio permanentes. Não é mais possível remeter para a Constituição ou para a Lei a justificação de ações ou decisões com implicações políticas. O cidadão eleitor já não se satisfaz com os meios de autorregulação do sistema e exige ser esclarecido no tempo e no modo da informação instantânea. A base de confiança entre eleitos e eleitores não é a mesma e a linguagem e os procedimentos “próprios” da política deixaram de poder constituir refúgio para quem não se quer sujeitar à ideia de uma monitorização permanente, exercida pelos media em nome da Democracia. IV. A política dos nossos dias é, em grande medida, o que os media apresentam como política e isso é parcialmente consequência das condições definidas pelos próprios media, interpretando o sentir popular, e não algo que, como aconteceu em tempos, possa ser controlado pelos agentes políticos. Neste ecossistema, não comunicar é impossível e todo o comportamento tem um significado e uma leitura política. Furtar-se ao esclarecimento, remetendo para outra esfera de apuramento de responsabilidades, é, com ou sem razão, uma forma de deixar os cidadãos esclarecidos.