Opinião

Coesão, liberdade e herança

I. O preço da coesão
A União Europeia tem muitas virtualidades e vantagens. Mas, tem também um emaranhado burocrático e uma arquitetura jurídica que pode exasperar o mais paciente dos seres. Vem isto a propósito de, mais uma vez, haver a necessidade de clarificar o âmbito da aplicação da extensão do regime de comércio de licenças de emissão da UE ao transporte marítimo. Simplificando: as regiões ultraperiféricas beneficiam de uma derrogação até 31 de dezembro de 2030 que, na prática, permite a não de oneração do transporte marítimo no contexto da legislação sobre emissões. Sucede, no entanto, que existem casos em que, apesar do destino final de um navio ser uma RUP, se houver uma escala intermédia, como tantas vezes acontece, este trecho da viagem não está a ser contemplado no âmbito da regulação. Na prática, o transporte fica mais caro.  Por isso, esta semana, voltei a insistir junto da Comissão Europeia para que clarifique o âmbito de aplicação por forma a evitar que os Açores, e outras regiões ultraperiféricas, sejam penalizadas. No fundo, não se trata de mais do que dar expressão prática ao disposto nos tratados.

II. A falsa liberdade
Enquanto discutem burcas que ninguém usa, há trabalhadores açorianos da Base das Lajes sem receber salário. É esta a verdadeira obscenidade: um país que ignora os seus problemas reais. No fim, o resultado é o mesmo de sempre - ruído, medo e distração do que realmente importa às pessoas.

III. As castas esquecidas
A propósito de Europa e de identidade, tive esta semana o gosto de promover, no Parlamento Europeu, o debate "Rediscovering Europe's Forgotten Grapes", dedicado às chamadas "castas proibidas". O nome diz tudo: variedades tradicionais e híbridas, com valor histórico e cultural imenso, que continuam excluídas da produção de vinho na União Europeia.
Não é apenas uma questão agrícola; é uma questão de memória. As "castas proibidas" fazem parte da história e da cultura de regiões como os Açores, onde a vinha cresce entre pedra e mar, resistindo ao vento e outros elementos. O debate juntou investigadores, produtores e enólogos de vários países - entre eles António Maçanita, que falou das vinhas únicas dos Açores e da urgência de rever regras que não fazem sentido num tempo em que tanto se fala de sustentabilidade.

IV. A herança de Balsemão
Com tristeza tomo nota da morte de Francisco Pinto Balsemão. Tive a oportunidade de ler, em 2021, as suas Memórias e, na altura, escrevi que era uma figura de estirpe rara: jornalista que não se censurou, empresário que soube investir na liberdade, político que, apesar dos rumos turvos, manteve o fio da Europa e da democracia.
Agora, aos 88 anos, parte aquele que foi primeiro-ministro entre 1981 e 1983, fundador do PPD-PSD, do Expresso e do grupo Impresa - e com ele parte também uma geração de social-democratas europeístas e reformistas que acreditava na política como serviço público e na imprensa como pilar da democracia.
Balsemão deixa-nos um código de conduta que vale mais do que qualquer editorial: liberdade de expressão, responsabilidade empresarial e jornalismo independente. Talvez o maior tributo que lhe possamos prestar seja reconhecer que, num tempo em que se confunde influência com ruído e opinião com propaganda, ele soube que a imprensa livre não é espetáculo - é serviço.
Hoje, quando discutimos a liberdade de imprensa, a degradação do debate público ou a subserviência ao poder económico e político, vale a pena lembrar Francisco Pinto Balsemão. Não para o glorificar, mas para sublinhar o exemplo de quem manteve coerência, voz própria e decência quando estas qualidades deixaram de ser moda. Que, nestes tempos perigosos, encontremos nas suas Memórias não o conforto fácil da nostalgia, mas o estímulo para continuar o combate - porque a liberdade não se herda, conquista-se...todos os dias.