Opinião

A Primavera Marcelista e o 25 de Abril

Hoje celebra-se o 49º aniversário da Revolução do 25 de Abril, uma das datas mais importantes da história de Portugal. Os desenvolvimentos políticos e sociais despoletados pela Revolução são relativamente bem conhecidos. Já alguns dos acontecimentos que ocorreram nas Forças Armadas e no topo da hierarquia política do Regime, na fase prévia á Revolução, são menos divulgados.

A Revolução do 25 de Abril de 1974 foi protagonizada por militares de patentes intermédias das Forças Armadas portuguesas, a maioria capitães ou majores, saturados com o esforço de guerra que Portugal empreendia nas suas colónias africanas. Esse movimento contestatário, o Movimento dos Capitães, foi sendo gradualmente influenciado e politizado por ideologias de esquerda. Iniciando-se como um movimento centrado na defesa de interesses corporativos de militares de carreira, o processo evoluiu, alastrou e acabou por integrar uma plataforma revolucionária de reformas políticas muito mais vastas do que a intenção inicial. É nesse processo de evolução que se cria o Movimento das Forças Armadas (MFA) e se redige a plataforma política que contemplou os célebres três “D’s”: democratizar, descolonizar e desenvolver.

Salazar nunca compreendeu nem aceitou duas das mais importantes consequências da ordem mundial liberal resultante do fim da Segunda Guerra Mundial, a autodeterminação dos povos e a consequente censura à colonização praticada pelos velhos impérios europeus.

Do final da década de 1940 até ao início da década de 1960, os outros impérios europeus desfizeram-se da generalidade das suas colónias ultramarinas. Salazar interpretou as descolonizações inglesa, francesa, belga e holandesa como sinais de fraqueza e de decadência dessas nações.

Para Salazar a Guerra do Ultramar inseria-se num quadro de racionalidade. O conflito armado, que se iniciou, no norte de Angola, na sequência do ataque do 15 de Março de 1961 a fazendas de café de colonos portugueses, transcendia a luta contra sublevações de guerrilheiros armados ou contra o comunismo internacional. Para Salazar não era apenas o regime do Estado Novo que não sobreviveria ao fim do Império. Para o ditador português era a própria dualidade ibérica, ou seja, a própria existência do Estado português independente que não resistiria ao colapso do Império.

A racionalidade salazarista assentava na premissa que sem um Império, Portugal ficaria de tal forma enfraquecido que seria absorvido e integrado em Espanha.

Combater em África era, assim, um imperativo da nação, uma luta existencial por um Portugal independente e soberano.

A Morte de Salazar e a sua sucessão por Marcelo Caetano não alterou o posicionamento do Estado português em relação à Guerra do Ultra Mar. Ainda hoje se discute, em alguns círculos, o que teria sido a evolução do Regime se a sucessão tivesse recaído em Franco Nogueira, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar. Porém, a escolha do Presidente Américo Thomaz, após consulta a diversas personalidades, recaiu em Marcelo Caetano. Caetano era um reputado e prestigiado professor de Direito, ex-ministro de Salazar, autor de um famoso código administrativo e de diversos livros, mas revelou-se um líder político indeciso de estilo “hamletiano”, ser ou não ser era a sua grande questão.

A indigitação de Marcelo criou uma grande expectativa de abertura e de evolução do regime português. Foram os anos da Primavera Marcelista e da Ala Liberal da União Nacional. A Ala Liberal, que viria a ser liderada por Francisco Sá Carneiro, surgiu nas eleições legislativas de 1969 e constitui-se como um símbolo de esperança da Primavera Marcelista. Nessas eleições, para além das candidaturas da Ala Liberal que se inseriam nas do partido do regime, foi permitido, dentro de limites estritos, a apresentação de listas oposicionistas protagonizadas pela CEUD e pela CDE. Os sinais de abertura e de mudança eram promissores.

Porém, Marcelo Caetano acabaria por ser um líder hesitante que chegaria atrasado às grandes circunstâncias históricas com se confrontou. Foi um chefe político espartilhado entre um Presidente da República que era o líder do reduto dos ultra conservadores do regime, os verdadeiros guardiães da herança salazarista, e o inconformismo reformista da Ala Liberal. Caetano nunca consegui articular e resolver essa complexa equação entre ultras e liberais. O resultado foi uma erosão rápida do capital político do presidente do conselho. O Estado Novo revelou-se um regime concebido e construído por Salazar que não funcionava sem o próprio.

Os primeiros anos da década de 1970 vão acelerar a degradação de um regime que se confrontava com diversas tensões internas. Um dos assuntos mais sensíveis do regime era a continuação do esforço de guerra nas três maiores colónias portuguesas em África. Cada vez era mais difícil o recrutamento de oficiais para o Quadro Permanente do exército português. Os postos de maior carência de preenchimento eram os de alferes, tenente e capitão. Precisamente os postos de oficiais que corriam maiores riscos de vida, pois eram os que lideravam as unidades de combate nas frentes da Guerra do Ultramar. São muitos desses capitães sobrecarregados com comissões em África que vão desencadear o 25 de Abril. Em 1972, documentos internos das Forças Armadas portuguesas indicavam um anormal número de inscritos na Escola Naval, um alistamento que representava muito menor risco de envolvimento direto nos combates das diversas frentes da Guerra.

Estes constrangimentos obrigavam os oficiais do exército a realizar sucessivas comissões de serviço nos teatros de guerra e já tinham levado o regime a facilitar a conscrição de oficiais milicianos para suprir as insuficiências do exército. Os contingentes de milicianos eram constituídos, na sua maioria, por jovens estudantes universitários que não realizavam a formação completa dos cursos de oficiais do exército. Eram vistos pelos militares de carreira como um grupo externo à verdadeira tradição militar portuguesa. Representavam um grupo à parte mas comportavam um fator de risco para o regime, vinham das universidades e muitos tinham consciência política e envolvimento em lutas académicas.

As grandes dificuldades de recrutamento de oficiais para o Quadro Permanente das Forças Armadas levou o Governo de Marcelo Caetano, por proposta do ministro da Defesa Sá Viana Rebelo, a apresentar, em junho de 1973, o Decreto-Lei 353/73 que iria incendiar os ânimos dos militares de carreira. Essa legislação abria a possibilidade de os oficiais milicianos poderem transitar para o Quadro Permanente mediante a realização de um curso intensivo na Academia Militar. O governo recua, abandona o Decreto em Agosto e remodela o ministro no final do ano. Porém, os danos dessa intenção perduraram. A Primavera Marcelista caminhava para o Outono político.

Na frente política a situação também se degradava. Marcelo Caetano, embrulhado na sua habitual hesitação, perdeu a oportunidade de ganhar margem de manobra ao evitar a recandidatura de Américo Thomaz à Presidência da República nas eleições de 1972. O resultado foi a reeleição do presidente por um colégio composto por cerca de seiscentas personalidades – após a eleição de 1958, marcada pela agitação social em torno da candidatura de Humberto Delgado, o regime alterou a constituição para passar a eleger o Presidente por um colégio eleitoral.

Entretanto, na Assembleia Nacional a Ala Liberal perdia a paciência com as hesitações e os sucessivos adiamentos de Marcelo Caetano. No início de 1973, os deputados liberais Francisco Sá Carneiro e Magalhães Mota batem com a porta e demitem-se, enfraquecendo fatalmente a Ala Liberal e inviabilizando a esperança de Marcelo Caetano em contar com um bloco reformista ao regime protagonizado pelos liberais. Mais tarde demite-se Miller Guerra, proferindo um violento discurso na Assembleia Nacional. Os deputados demissionários reagiam à recusa de Marcelo em libertar os presos políticos, em aceitar uma nova lei de imprensa que abolisse a censura e em apoiar um projeto de revisão constitucional que consagrasse um modelo de cidadania com amplos direitos, liberdades e garantias.

Assim, as eleições legislativas de outubro de 1973 são o canto de finados da ditadura portuguesa. O ímpeto da esperança e de otimismo que a Ala Liberal transportara em 1969 já não existia. No final de 1973 Marcelo estava completamente isolado, cercado pelos Ultras liderados por Américo Thomaz e já sem o apoio político de uma Ala Liberal inconformada e reformista. O regime estava bloqueado e condenado a prazo, embora, na altura, poucas pessoas pudessem aperceber-se desse bloqueio.

Mas o pior ainda estaria para vir, o lançamento de um livro que abalaria profundamente o regime assinado pelo general que ocupava o cargo de governador da Guiné Bissau.

António Spínola era um militar carismático cuja fama era lendária. O general cultivava profundos laços de solidariedade com os seus subalternos. Tinha a fama de ter um comportamento heroico nas batalhas que participava, havendo relatos de que combatia em tronco nu em plena selva guineense. Spínola tinha uma personalidade egocêntrica mas era considerado um militar competente e leal.

Contudo, diversas vicissitudes no plano militar iam convencê-lo que as Guerras no Ultramar não podiam ser vencidas. Na sua opinião a solução só poderia ser política.

Algumas opiniões de Spínola geram tensões com Marcelo Caetano. Em agosto de 1973, o general é substituído no cargo de governador da Guiné. Em Janeiro seguinte toma posse de um cargo criado especificamente para o acomodar, vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. Spínola chegava à segunda posição na hierarquia militar portuguesa. A primeira era ocupada por Costa Gomes.

As opiniões de Spínola sobre possíveis soluções políticas para a Guerra vão ser compiladas num livro, lançado a 22 de Fevereiro de 1974, com o sugestivo título de “Portugal e o Futuro”. O livro vem trazer ao grande público três ideias que abalariam o regime. Primeiro, que a guerra não podia ser vencida. Segundo, que deveriam ser realizados referendos nas colónias. E terceiro, que em função dos referendos deveria ser criada uma república federal em que as antigas colónias seriam estados federados dessa república, dotados de governo e de parlamento próprios.

Retrospetivamente é difícil de compreender como é que foi autorizada a publicação de um livro tão sensível para o regime, ainda mais sendo assinado por quem foi. O livro vai gerar muitas ondas de choque. O próprio Marcelo vai sugerir que Spínola e Costa Gomes se dirijam a Belém para reivindicar ao Presidente a chefia do governo, ambos rejeitam. Mais tarde o próprio Marcelo Caetano procede a tentativas de demissão, chegando mesmo a escrever uma carta ao Presidente da República nesse sentido. Os sinais de degradação do regime eram evidentes. As conspirações dos capitães eram conhecidas no topo da hierarquia militar. A conspiração dos militares portugueses só foi possível porque as Forças Armadas, na altura, não tinham um serviço de informações e porque a PIDE/DGS não monitorizava as atividades dos militares. A tentativa de golpe do 16 de Março confirmou a agitação nos quartéis.

Cinco semanas depois chegaria o grande dia, o 25 de Abril de 1974, o dia que libertou as forças que possibilitaram, depois de muitas lutas e muita coragem, construir uma democracia e restituir a Liberdade aos portugueses.

A luta contra a ditadura, antes da Revolução, não foi protagonizado só pelos militares, envolveu milhares de portugueses e portuguesas cuja coragem e convicções inabaláveis merecem o nosso maior respeito e admiração. Essas lutas, individuais ou coletivas, contribuíram para derrubar um regime anacrónico e decadente que foi deposto quase sem resistência, ao fim de 48 anos de ditadura.