Opinião

Não nos abstemos

I. Em democracia, a abstenção é uma das formas possíveis do cidadão se relacionar com o sistema político e pode ter na sua origem uma série vasta e diversificada de motivações. Para resumirmos o que poderia ser uma categorização interminável, admitamos simplisticamente que pode resultar de fatores externos e ser, por isso, involuntária, mas também pode constituir um comportamento eleitoral consciente e desejado pelo próprio eleitor e ser, por isso, voluntária. Num caso como noutro, o sistema pode viver com níveis razoáveis de falta de participação eleitoral. É admissível que existam situações de exceção a que o sistema de recenseamento e votação não consegue responder e que dificultam o exercício do direito de voto, como também é razoável que uma certa percentagem de eleitores inscritos opte por não votar como forma de interação com o sistema político. As entropias burocráticas e as franjas de reação ao sistema são, pois, elementos constitutivos da própria democracia. A questão é quando a abstenção, voluntária e involuntária, assume uma dimensão que se sobrepõe à própria participação eleitoral e se mantém a níveis constantemente elevados. Nesse caso, é a própria essência do sistema que tem de ser analisada, debatida e, sendo caso disso, reestruturada, em nome da sua adequação e eficácia. II. Na noite eleitoral do passado dia 16 de outubro, perante os 59,2% de abstenção então verificados, o PS assumiu como prioridade imediata para a atual legislatura o combate à abstenção eleitoral e, no âmbito das suas primeiras jornadas parlamentares, realizadas na passada semana, na Graciosa, deu início a uma reflexão aberta, participada e responsável sobre a matéria. Nessa mesma noite, ouviu-se de imediato o carpir cínico dos que insistem em considerar que a abstenção é toda igual e que significa de forma evidente que as pessoas estão fartas dos políticos e da política. Disseram que não, que era só fumaça, e que não passaríamos das intenções, porque no fundo só nos inquietamos na noite das eleições e, no resto do mandato, convivemos muito bem com a ausência de envolvimento dos cidadãos. Enganaram-se e vão enganar-se ainda mais. Desde logo, o PS, consciente de que uma Autonomia sem participação política é uma Autonomia sem alma, condenada a ser só arquitetura e coreografia, mas também de que nem toda a abstenção é uma expressão voluntária de desagrado, quer saber com rigor e sustentação científica de que tipo de abstenção estamos a falar. Vai, por isso, propor à Assembleia Legislativa a realização de um estudo que analise, no tempo e com profundidade, o fenómeno da abstenção eleitoral na Região, definindo a natureza e o peso das razões técnicas e políticas que estão na sua origem, no quadro específico do nosso ecossistema político-institucional. Sem essa base fundamental, avançar certezas absolutas sobre o significado da abstenção e debitar medidas imediatas de combate é um péssimo serviço à Autonomia, porque, não garantindo a resolução do que precisa de ser resolvido, dispara indiscriminada e infundadamente sobre todos os agentes do sistema. Paralelamente, o PS assumiu a missão de agregar em torno de um esforço comum as várias forças políticas com representação parlamentar, com vista a uma reforma sólida e consequente da Autonomia, que a torne mais próxima dos cidadãos, mais envolvente, mais participada e mais vivida. Será, nesse sentido, criada uma Comissão Eventual com o propósito de atualizar consensualmente o quadro institucional e funcional autonómico. III. O PS não se abstém de tentar e está determinado a procurar soluções que respondam à evolução da relação dos cidadãos com o sistema político. Não para que tudo possa ficar mais ou menos como está, mas para que tudo possa ficar mais próximo do que, nos dias de hoje, deve ser. Não descansaremos enquanto não fizermos tudo o que está ao nosso alcance para revitalizar e fortalecer a resposta autonómica às exigências dos Açores de hoje.