A Semana do Mar está à porta. Na cidade começam a surgir as tradicionais “barraquinhas”, o bom tempo convida a um belo mergulho, a casa enche-se de colchões para os amigos dos filhos e para os amigos da família que, invariavelmente por esta altura, atravessam o oceano para se juntarem a nós, neste que é o maior festival náutico dos Açores. As rotinas da casa são deliciosamente substituídas pela ausência de horários rígidos, de refeições completas e a horas, dando lugar a um frenesim que me enche de felicidade. Para alguém que, como eu, precisa de silêncio, de refeições tranquilas e de momentos em qua apenas eu me faço companhia, esta é sem dúvida uma das alturas do ano que põe à prova a minha capacidade de adaptação, de resiliência, de superação. Ter a casa cheia enche-me a alma, desafia-me e obriga-me a sair da minha zona de conforto, onde tudo tem uma ordem, uma regra, um horário, uma exagerada organização, nem sempre fácil de entender para mim, quanto mais para os outros. Certo é que, quase por magia, todo este meu mundo passa a ser facilmente transponível quando a casa se enche de amigos e familiares, que fazem destes dias que se aproximam uma verdadeira festa, recheada de bons momentos, de memórias, de boas conversas, gargalhadas e abraços, que se eternizam na minha memória.
Todavia, apesar desta felicidade que me enche o coração por estes dias, não consigo esquecer todas as imagens de guerra que nos continuam a entrar pela casa. Num gesto deliberado de cobardia, recuso-me olhar para a televisão quando as notícias que nos chegam do Sudão, da Birmânia, da Somália, do Camboja e Tailândia, da guerra entre Israel e Hamas em Gaza, do conflito Rússia‑Ucrânia, da Síria e do Iémen, especialmente quando no meio de todo este cenário de violência, de destruição, de mortes, de fome, de desespero, de lágrimas e gritos, estão crianças. Crianças! Seres humanos que em nada contribuíram para aquilo que estão a viver! Esta semana, enquanto cozinhava, ouvia o telejornal, também ele parte da minha rotina, e por descuido ou impulso, olhei para a televisão e dei de caras com a imagem de um adolescente, que no início da guerra pesava apenas 40 Kgs, e que atualmente sobrevivia num corpo que pesava 10 Kgs! Rapidamente desviei o olhar, mas não mais consegui desviar aquele corpo do meu pensamento. Ao longo desta semana, a imprensa escrita regional obrigou-nos a encarar fotografias destas crianças, em busca de alimento, que me enchem de vergonha enquanto mãe e enquanto cidadã deste mundo cruel.
Apenas no Sudão, entre abril de 2023 e meados de 2025, a guerra roubou a vida de mais de 522.000 crianças por desnutrição. E não, o fato de me estar apenas a referir às crianças não quer dizer que o sofrimento dos adultos não me indigne, não me revolte, não traga ao de cima o pior que há em mim. Porém, o sofrimento de uma criança angustia-nos sempre mais que o de um adulto, principalmente a nós, mães, que de alguma forma conseguimos ver os olhos dos nossos filhos nos olhos destas crianças que sofrem.
Tirar a vida de uma criança num cenário de guerra não é apenas um ato de violência… é aniquilar o amanhã, é calar a promessa de um povo que poderia reerguer-se, é destruir a pureza que sobrevive apesar da crueldade humana.
A guerra destrói sem distinção, mas cabe-nos a responsabilidade de não aceitar o silêncio cúmplice. É urgente recusar a banalização da violência e afirmar, sem hesitação, que nenhuma razão serve de desculpa para a morte de uma criança.
Porque não há vitória onde se enterram crianças. Só há luto. E vergonha.
Muita vergonha!