Opinião

back to the primitive

em 2000, os norte-americanos soulfly – fundados em 1997 por max cavalera, ex-vocalista dos sepultura – lançaram o seu segundo álbum ao mundo, intitulado “primitive”, através da apresentação do single “back to the primitive”, faixa-cartão-de-visita que se tornou num estrondoso sucesso.

o tom do álbum é definido logo nos primeiros segundos pelo som de um instrumento tradicional, o berimbau, seguido de uma entrada de bateria fortíssima, que introduz a faixa “back to the primitive”, no ritmo português “um, dois, três, quatro”, ao invés dos internacionais “one, two, three, four”, tão costumeiros quanto emprestados.

a música gravita em torno da ideia do regresso às origens, do combate à política e às elites, um rejeitar do pensamento e desenvolvimento humanos como consequências negativas da inteligência, pugnando por um retorno ao animal que habita em nós, um voltar atrás no tempo, um regressar à natureza, porque “we got our life to live/ the way we want to be”, porque queremos as coisas “how it used to be” e “we’re back to set it free” e, claro, “god will guide me”.

a mensagem da música, e, em última análise, do álbum, não deve ser lida fora do contexto nacional dos músicos que a compuseram – brasil –, uma clara rejeição do status quo político e um apelo às sociedades tribais locais indígenas, mais verdadeiras, mais próximas do “bom selvagem”, como forma de resolução dos problemas dos nossos dias.

ora bem, exceptuando a sempiterna narrativa literária do bom filho que à casa torna, é mais ou menos assente que querer regressar às origens, no sentido de querer voltar atrás, regressar ao passado, para resolver algo do presente não é solução. mais, pressupõe a recuperação de uma certa ignorância tribal e medieval de pensamento, com as suas crenças, superstições e preconceitos, nada consentâneas com o nosso quotidiano.

querer voltar atrás é querer negar o desenvolvimento, a ciência, o caminho até então trilhado, tapando os olhos e negando as evidências à nossa volta, fixando o olhar num umbigo idílico que vive na nossa memória distante. voltar às origens não é, de todo, por si, uma coisa boa. tal como nem tudo o que é “natural” é bom – aliás, há um conjunto de substâncias e elementos que nos são fatais, mas que encontramos na natureza. o arsénico, por exemplo.

exceptuando as questões éticas motivadas por preconceitos religiosos, o desenvolvimento da ciência nas últimas décadas tem permitindo uma estrondosa melhoria da longevidade do ser humano e uma resolução de patologias e doenças que, até há muito pouco tempo, eram consideradas soluções possíveis apenas em histórias de fantasia ou de ficção científica.

não nos podemos esquecer que, em apenas 66 anos, o ser humano passou da invenção do avião à conquista do espaço e, portanto, o caminho a trilhar está completamente em aberto e só os limites da imaginação e a criatividade humanas poderão ser entraves à plena realização científica e, consequentemente, humana.

apesar de tudo, há uma corrente subterrânea de pensamento medieval que consegue subsistir lado a lado com a contemporaneidade do desenvolvimento e da evolução humanas. é aquela corrente que pugna pelo retrógrado, que vocifera contra o progresso e que grita contra a modernidade, em prol de uma “pureza” e uma “ordem original” que supostamente vive no passado, e às quais só se obtém através do retrocesso.

apesar de gostar muito da música, foi em “back to the primitive” que pensei quando vi a notícia da decisão do supremo tribunal de justiça dos estados unidos da américa de revogar a famosa sentença do caso “roe vs. wade”, a qual permitia a interrupção voluntária da gravidez no país, a nível federal, transformando esta possibilidade numa decisão estadual, remetendo assim para cada estado a decisão final.

um retrocesso civilizacional de quase meio século. quarenta e nove anos contados, cinco meses e três dias, um total de 18.051 dias em que as norte-americanas podiam livremente regular o seu corpo e decidir sobre elas próprias. acabou. agora, ou o aborto é ilegal ou é feito noutro estado. já diz o povo, sábio nestas coisas das gerações: “para trás, mija a burra”.

o supremo tribunal de justiça é composto por nove juízes, sendo um juíz chefe, neste caso john g. roberts, jr., e oito juízes associados: samuel a. alito, jr., clarence thomas, stephen g. breyer, sonia sotomayor, brett m. kavanaugh, elena kagan, neil m. gorsuch, e amy coney barrett. um tribunal composto por 5 republicanos e 4 democratas. tão divididos quanto o próprio povo americano.

a decisão foi apresentada pelo juíz associado samuel a. alito, ao qual se juntou clarence thomas, nomeado por bush pai, e os três nomeados de trump: neil gorsuch, brett kavanaugh and amy coney barrett. abstendo-se de votar, por discordâncias, o juíz chefe john roberts, nomeado por bush filho, restou votar contra os juízes associados stephen breyer, nomeado por clinton, e sonia sotomayor e elena kagan, nomeadas por obama.

24 de junho de 2022 ficará para a história como mais um dia triste na história das mulheres, e da sua - infelizmente - sempre presente luta por liberdade e igualdade de direitos.

um dia de vergonha para os norte-americanos, divididos que estão desde que trump assumiu a presidência, dilacerados entre o conservadorismo primitivo e o modernismo evolutivo, o evolucionismo e o criacionismo, o liberalismo e aquela espécie social, entre o branco e o preto, o holier than thou de que metallica nos lembra e o vale tudo.

é esta atitude righteousness, suportada na palavra de deus, pro-life-pro-terrorismo, que inflama o ódio à liberdade, à individualidade, à privacidade e ao direito de cada mulher que tem de enfrentar o infortúnio de ter de escolher, de ter de interromper uma gravidez. e há milhões de razões, de cada uma a sua sentença, e é de uma arrogância intelectual atroz pretender regular as decisões pessoais. das mulheres, neste caso.

leis feitas por homens, debatidas e votadas maioritariamente por homens, sobre a realidade da maternidade das mulheres. maternidade que nunca conhecerão, porquanto homens, de sexo diferente. oh! hipócritas e falsos evangelistas, se deus existisse nos vossos corações, esse deus que vós evocais para justificar a rectidão dos vossos julgamentos, se deus existisse nos vossos corações, fazíeis leis que respeitassem a liberdade de cada uma, sem julgamentos e arremessos de primeiras pedras, tal como o vosso líder crucificado vos ensinou.

o regresso a um estado mais primitivo também traz consigo uma realidade binária (sim/não; bom/mau; preto/branco) que não permite o meio-termo, o talvez, o sim, mas... ou o não, contudo... e esta falta de amplitude impede a discussão racional em torno de um assunto que tinha, nos estados unidos, cinquenta anos de prática.

em verdade vos digo: não é possível discutir assuntos sérios quando as possibilidades são apenas “estás comigo” ou “estás contra mim”.