Opinião

Não apetece!

Sinal estranho. Num tempo de maior disponibilidade pela reclusão recomendada e acatada, agora em que o tempo parece ser demasiado, não apetece escrever sobre esta pandemia. Fenómeno estranho, não por abulia, mas por um sentimento de impotência perante tantas mortes desnecessárias, tanta tragédia humana, tanta incerteza sobre o futuro das pessoas e dos seus sonhos. Hoje os humanos observam de modo tão súbito e direto o avançar desta ameaça real, num tempo em que à ciência se confia quase tudo, no pressuposto de ser usada para proteger e tratar. Estamos num estado de incredibilidade embora a frieza dos números nos traga ao imperativo da ação. Ficar em casa. Proteção real. Dolorosa para muitos, mas real e a mais eficaz nesta luta. Regresso aos livros, que a minha memória das epidemias da infância fica-se pela vivência dos enterros de crianças vítimas de sarampo e de varíola, com caixões minúsculos revestidos de branco cetim, ladeados por fitinhas também elas brancas, em cortejo lento de mais um anjo que partia para o céu, enquanto eu e meu irmão atrás das janelas cobertas por panos vermelhos, em reclusão forçada, não percebíamos que estava a acontecer uma mortandade tão elevada que a que a ciência ajudou a resolver. E releio Nuno Lobo Antunes, no seu admirável livro “Sinto Muito”, onde num dos seus capítulos nos relata os tempos da epidemia do sarampo e suas complicações. Doença predominantemente da infância. “ A morte estava a dar a volta…” relato indiscritível do tempo e do modo como se confinavam em internamento crianças, tão vulneráveis como os anciãos de agora em isolamento, morrendo sozinhas como se morre agora nesta pandemia, enterradas sozinhas, perante a impotência de quem tudo faz para que tal não aconteça. Apetece-nos tal como aos pais e mães de outrora raspar a tinta das janelas do Hospital Pediátrico e espreitar para eles, lançando-lhes um olhar de esperança e de apelo à resistência pela vida, este bem maior que devemos defender a todo o custo. E revolto-me, questionando como é possível que, perante tanta informação, tanto direto, tanta desgraça alheia, não consigamos fazer a nossa parte de cidadãos responsáveis lutando ao lado de todos os que a todo o custo nos querem proteger. Não basta aplaudir as medidas do Governo Regional, que, diga-se tem, sobre si uma enorme responsabilidade em providenciar auxílio social e cuidados médicos a quem precisa. Não basta fazermos louvores aos profissionais de saúde, heróis sempre presentes na defesa da vida, sem aplicarmos responsavelmente todas as recomendações e até imposições das autoridades de saúde. O tempo é de luta contra um inimigo invisível, mas conhecido. Que nunca se perca uma vida por incúria nossa. Ontem eram as crianças as mais vulneráveis, hoje somos todos, principalmente os nossos anciãos, reserva imaterial da nossa identidade. Fiquem em casa, mesmo que não apeteça.