Opinião

joão martins (kit)

Há seis anos atrás, a 21 de fevereiro de 2016, angra via falecer o kit, de verdadeiro nome joão martins, no hospital de santo espírito da ilha terceira, vítima de doença prolongada. angrense de gema, disse-me que nunca tinha tido pretensões de sair de cá – sentia-se terceirense, apesar de não ser aficionado, e era na sua ilha que gostava de estar. também tinha uma predilecção pela ribeira quente, em são miguel, o que lhe dava uma costela corisca de que gostava.
Dedicou toda a sua vida à música, como guitarrista e vocalista, tendo feito parte de vários projectos musicais, entre eles os no band e os rip (rest in peace), que deixaram alguns registos gravados para a posteridade.
Em 1998 apresentou ao público o seu álbum a solo, intitulado “crónicas de um homem só”, ilustrado com fotografias a preto e branco de jorge monjardino. um registo de originais que mistura temáticas insulares, às quais estamos já habituados, com a memória do ultramar e da guerra, adicionando os pecados da carne contra a religiosidade impressa no basalto que nos enforma, salpicando assim, um pouco de sexo sem amor, no qual se ouve, como toadas iniciais, o som da guerra, uma viola da terra a trinar os bravos, a voz de kit e um coro que entoa: “antes morrer livres que em paz sujeitos”... e entra a bateria!
“crónicas de um homem só” apresenta uma sonoridade marcada no e do seu tempo, sem grandes rasgos de inovação ao nível da técnica ou da produção, apesar de ser uma obra bastante coesa, temática, que não deixou de granjear alguma fama a kit, e é um trabalho que tem vindo a superar o teste do tempo, pese embora se encontre presentemente fora de circulação. aguarda-se uma reedição, algures, no tempo dilatado das justas homenagens aos homens.
À data do seu lançamento, “crónicas de um homem só” gerou um burburinho de crítica e um profundo sentimento de desilusão, uma vez que, ao invés da versão habitual tocada por kit nos seus concertos, a música “tirana” foi editada numa versão de discoteca, inédita até então, fruto de um capricho do músico, reflectido também na opção da grafia (“tyrana”, ao invés do habitual “tirana”) e cuja sonoridade é tão fora do restante álbum que rompe a direito, que nem uma faca em carne tenra, com as músicas antes e depois.
Aquela música surgia ali tão estranha quanto inesperadamente – no fundo, era como se alguém tivesse gravado um mixtape e colocado, sem querer, uma música de discoteca no interior de um playlist de rockalhada, e só se desse conta quando o mal já era irremediável.
Mais, parecia ser inconcebível, para um artista como o kit – indefectível defensor do rock e da guitarra –, vender-se ao consumismo discoteque que grassava nos finais dos anos 90, e que despontaria, em certa medida, na sonoridade genérica dos anos 2000, alguns anos à frente.
Mas kit era fiel aos seus princípios e se havia coisa que sempre o caracterizou, desde pequeno até à vida de músico, fora não ter medo de experimentar, de arriscar, de misturar, enfim, de brincar com sonoridades aparentemente antagónicas ou, pelo menos, dissonantes a uma primeira análise. nisto, kit manteve-se constante ao longo do tempo.
Esta brincadeira custou-lhe não ter a música na sua versão clean, ou seja, mais próxima da actuação acústica que tiago pereira gravou no jardim duque da terceira, para o projecto “a música portuguesa a gostar dela própria”, disponível no vimeo, onde kit canta
“tirana” na sua forma mais próxima da original – aquela que as pessoas esperavam ver no conjunto de “crónicas de um homem só” e não a versão discoteca que acabou por sair.
Fiel a si próprio, kit manteve a sua linha e a sua assinatura sonora. goste-se ou não, o seu som e a sua voz são inconfundíveis, e pôr o cd no leitor e ouvir “crónicas de um homem só” do início ao fim é um regresso ao passado, uma viagem nostálgica à explosão de bandas que nasceram e morreram nos açores ao longo dos anos 90 e que definiram, por si e para os outros, a banda sonora de uma geração e, em certo ponto, a banda sonora de uma região, numa determinada geração.
Na altura, o álbum teve alguns hits à nossa escala regional, que deixaram o seu próprio lastro nestas ondas das opções musicais das gerações. temas como “sexo (sem amor)”, “tirana” ou “ferir até à dor” fazem parte da nossa banda sonora de ilhéus. e fizeram parte da minha adolescência, da banda sonora do meu crescimento, ecoando ainda como memórias distantes na minha idade adulta.
Tal como os sobredotados, os chilli mozart, ou os bate n’avó, o kit e os rip são ambiências sonoras que encorpam as memórias de muitas das minhas dores de crescimento: os meus amores e desamores, as minhas amizades e rupturas, a minha adolescência – ora nos concertos na praça velha, na pista de kartings, nas festas das cidades, ou como memórias auditivas dos separadores musicais dos intervalos dos programas da rtp-açores na década de 90.
Os rip (rest in peace) apareceram em 1992, tinha eu catorze anos. portanto, dos meus catorze aos dezassete anos, pouco antes de rumar para ponta delgada, para a universidade, assisti a vários concertos deles, do contabilizado de três anos que ultrapassa a centena, em diversos palcos – sanjoaninas, festas da praia, festival novas ondas, por exemplo.
Ainda tenho uma das duas demo-tapes que os rip gravaram, que tem a versão dos “vampiros” de zeca afonso, cuja estreia decorreu nas festas do pico da urze, com o duarte gomes a fazer o seu debut como novo vocalista da banda, deixando assim o kit livre para se dedicar à guitarra. lembro-me do videoclipe da canção “sexo”, que também faz parte do meu imaginário de adolescente, assim como algumas imagens dos programas de televisão transmitidos pela rtp-açores e pela rtp-internacional em que os rip participaram.
A banda suspendeu a sua atividade no final de 1995 e no ano seguinte fui para são miguel. aí acompanhei hangover, morbid death, gnosticism, obscenus, e muitas outras bandas que actuavam regularmente nos diversos palcos de festas de freguesia e festivais e outros eventos semelhantes. durante doze anos, os rip estiveram desaparecidos, e reapareceram já eu estava a viver na terceira, em 2007, para assinalar o 15º aniversário da banda.
O kit foi distinguido com o prémio música açores em 2007.
Tive a felicidade de conhecer o kit e de o ter como amigo. sinto ter contribuído para a sua memória quando gravámos a música “por vezes” e a “entrevista de um homem só”, no canal youtube do madeinazores.eu, poucos meses antes de falecer. 
Rip, kit.