Opinião

quanto mais me bates

menos eu gosto de ti. em geral, é assim que funciona com os animais e o ser humano não é excepção: quanto mais se bate numa pessoa, menos essa pessoa gosta de quem lhe bate, e, em última instância, menos gostará de si própria, pese embora poder manifestar reacções de concordância com o agressor. mais que não seja para não levar de novo.

que fiz eu de errado? qual é o meu problema? será que devo mudar? no meio da pancadaria, dos desgostosos, dos gostos da reconciliação e das promessas de melhoria, as dúvidas acabam por levar a mudanças de atitude, em face do medo do regresso da agressão, de tal forma que se confundem com vontade própria do agredido.

a sabedoria popular tem as suas coisas engraçadas. não a devemos menosprezar, uma vez que representa séculos de conhecimento acumulado, passado de geração em geração, mas também não a devemos levar à letra. apesar da dilatação temporal, a verdade é que essa acumulação de informação não se traduziu nem em bons conselhos de vida nem em úteis orientações de acção. muito pelo contrário.

para cada provérbio ou ditado, costuma existir o seu equivalente contrário igualmente válido. dizer-se “antes um pássaro na mão do que dois a voar” e logo de seguida alguém contrapor com o “quem não arrisca não petisca” é um bom exemplo desta dualidade: são ambos verdadeiros, sendo que, por vezes, é preferível a contenção, noutras, o risco. quando? aí dependerá do contexto.

dizer-se “um burro calado passa por inteligente” e logo de seguida alguém ripostar com o “quem tem boca vai a roma”, como garante de que é “falando que a gente se entende” porque “quem não deve não teme”, serve de pouco mais do que a inócua corroboração de factos e verdades sobre as quais nada podemos.

por um lado, esta dualidade não ajuda à decisão; por outro, lança ainda mais dúvidas sobre qual a acertada ou o caminho a seguir. se é que a sabedoria popular quis alguma vez dar alguma resposta mais ou menos certa. se calhar, pelo contrário, a sabedoria popular está aí apenas para nos “atirar areia para os olhos” e, mais do que um acumular de conhecimentos que se plasmam em sentenças úteis de utilização na vida de uma pessoa, ajudando-a a tomar decisões, é na verdade apenas a constatação de factos, referidos em formato de provérbio, de sentença reduzida a um número mínimo de palavras, transformando assim qualquer realidade, dando-lhe um tom mais grave, quase profético.

o “quanto mais me bates, mais eu gosto de ti” é assim como que o notar de uma realidade comum no nosso país, frequente em relacionamentos interpessoais, nos quais se aplica a máxima de que aquelas pessoas que agridem outras pessoas estão, no fundo, a demonstrar o seu amor pelos agredidos. do género das crianças no recreio, quando os rapazes – por ignorância e algum requinte de maldade – levantavam as saias às raparigas, fugiam delas, corriam atrás delas, empurravam-nas, beliscavam-nas, e elas, claro está, ripostavam.

um amor intenso, só um amor intenso pode estar na base de uma relação deste género. das que se bate porque se gosta, como se não existissem palavras, expressões, metáforas, comparações ou outros artifícios para nos ajudar a exprimir os nossos sentimentos. como se agredir o nosso parceiro fosse não só uma manifestação de um amor intenso e lindo entre duas pessoas, mas também o reflexo na nossa preocupação pelo bem estar do nosso parceiro.

há uma áurea de romantismo em torno das relações intempestivas, quiçá resultado das várias histórias de famosos, de músicos a estrelas de televisão, e do mundo do espectáculo em geral, que de alguma forma legitima – ou pelo menos fecha os olhos a – relações abusivas, tomando-as como resultado da paixão do amor que é, no fundo, fogo que arde sem se ver. e o fogo queima, como a paixão, enlouquece. faz-nos perder o tino.

é por isso que se fazem as coisas mais irracionais quando se ama. é por amor que se invadem telemóveis, perscrutam mensagens, históricos, caixas de correio electrónico, que se fazem cenas de ciúmes e de perseguição, se vigia, se controla, se desconfia de quem se deveria amar, por medo da rejeição, da infidelidade, do afastamento, de ficarmos – enfim – sozinhos e é por isso que se faz tudo isto. por amor, dizem eles e elas. nada mais do que amor. quem ama enciúma. 

assim diz quem legitima.

no concurso “big brother famosos”, da tvi, bruno de carvalho, antigo presidente do sporting, protagonizou alguns momentos de tensão e alguma agressividade para com a sua companheira. a 6 de janeiro de 2022, sentado à mesa em conversa com ela, num jantar de reconciliação, lá diz ele que há aquela máxima do “quanto mais me bates, mais eu gosto de ti”. ao que a menina responde, e bem, que a máxima não era nada fixe e que não gostaria de ser essa pessoa – presumo que a que leva, não a que bate.

que as produções tendam a escolher trogloditas para animar as noites de quem quer ver programas como o “big brother” ou a “casa dos segredos”, tudo bem. legítimo e bem ao gosto de quem os segue. no entanto, televisionar agressões num casal, como o célebre pontapé do marco no primeiro programa, ou as de bruno de carvalho neste mais recente, é contribuir para a violência no namoro, em forma de omissão, e para a normalização das agressões em relacionamentos, por inacção.

no plano internacional, johnny depp e amber heard estão a debater em público a sua relação amorosa, mercê de uma acção judicial que aquele instruiu contra aquela, por esta ter escrito um artigo de opinião onde lançava a suspeita de ter sido vítima de violência doméstica daquele.

uma coisa é certa: ambos são péssimos um para o outro. posto isto, este julgamento tem mostrado o quão maquiavélicas podem ser as pessoas quando querem guardar provas para memória futura. quer johnny quer amber fartaram-se de se agredir, gravar um ao outro, sofrer, reconciliar, tentar de novo, esquecer o abuso, e voltar tudo de novo, a repetir-se numa “downward spiral” (trent reznor) até a um desfecho trágico, não se tivessem divorciado quando se divorciaram.

apesar de tudo, inclino-me para a tese de que o agressor foi amber e não johnny e que este, habituado quiçá à ideia de que às mulheres é-lhes permitido todo o tipo de acesso de raiva e que ao homem lhe cabe manter a calma e ser um cavalheiro e não ripostar, nem tão pouco sugerir tal caminho.

em 2021, portugal registou uma média de 37 vítimas de violência por dia, 25 das quais sobre vítimas do sexo feminino, tendo 23 pessoas perdido a vida como vítimas de violência doméstica, respectivamente: 16 mulheres, 2 crianças e 5 homens.

shame on us.