Opinião

quem não se sente

quem não se sente, ao ver a injustificada invasão da ucrânia pela rússia, desencadeando uma crise humanitária sem precedentes no nosso vigésimo primeiro século, cirurgicamente planeada e executada quando todo o mundo ainda recupera de uma pandemia que durante dois anos colocou a nossa vida em pausa e os nossos sonhos em suspenso?

quem não se sente, ao assistir à guerra televisionada e à resistência de david contra golias, que representa, ao fim e ao cabo, todos aqueles que lutam pela sua existência, pela sua permanência, pela sua liberdade de existir como se quer e onde se quer, contra a opressão maníaca, sem sentido e destruidora, que tudo pretende aniquilar não ser a vontade de dominância nacional?

quem não se sente ucraniano, nestes momentos, ou simplesmente europeu, nos seus valores ocidentais que importam salvaguardar mais ainda do que o petróleo e o gás natural que, nestes momentos extremados, não são combustível suficiente para aquecer o coração frio de quem pela força se define e pela guerra se revela, mostrando a todo o mundo a verdadeira natureza da sua personalidade podre?

quem, sendo açoriano, não sente nesta guerra ressurgir a máxima “antes morrer livres que em paz sujeitos”, aquela que ciprião de figueiredo usou para responder à pretensa espanhola, estampada nos rostos de todos e cada um dos ucranianos – homem, mulher, criança – que irredutivelmente se apresentam na linha da frente contra a pretensa russa, seja de arma em punho ou de voz ao alto, relembrando-nos de que “um morrer bem é viver perpetuamente”?

quem não se sente, também, quando os países oferecem a sua ajuda sem sujarem as suas mãos, que isto de pilatos foi só uma vez mas serviu de emenda, que deviam ser mais do que um tampão para um confronto onde quem está fica e quem fica morre de pé?

quem não se sente um disse-que-disse envergonhado quando o primeiro ministro do seu país discursa sobre a guerra enveredando um uniforme de combate, camuflado, como se lhe fosse natural a roupagem de guerra, como se dos políticos se esperasse precisamente isso – a adaptação e a conveniência: que quando discursassem sobre a escola, usavam uniforme escolar, e quando fossem falar sobre saúde, vestiam a bata branca do senhor doutor?

quem não se sente bastante envergonhado quando a estupidez legislativa discutível – que tudo faz por 15 minutos de atenção – permite que uma besta humana como o mário machado seja dispensado das suas apresentações obrigatórias para ir combater ao lado das forças ucranianas, apenas para ser rejeitado por estas mesmas forças que o consideram uma besta de pessoa e não querem gente da sua laia a combater a seu lado?

quem não sente que foi uma chapada de luva branca diplomática que só ficou mal a portugal, ao estilo do remediado que oferece um par de sapatos rotos ao pobre – porque é sempre melhor do que nada – apenas para o pobre lhe devolver a podre esmola porque prefere não ter nada do que ter uma porcaria remediada?

quem não sente que nem tudo vale, que há limites e linhas vermelhas que devem ser traçadas, e que, enquanto se mantiver esta postura democrático-politicamente-correcta para tratar certos problemas que nos assolam, o mundo não pula nem avança, antes estagna e se conspurca na poça de lama que produz pela verborreia mental de muitos do seus dirigentes?

quem não se sente, também, impotente ante a estupidez e atroz cegueira humana que entende que cancelar a cultura russa do passado é vingar o oligarquismo putiniano do presente; como se apagar tolstói ou dostoiévsky fosse fazer o que quer que seja à mãerússia; como se a cultura humana – cosmopolita, humanista e elevada – fosse no fundo apenas uma amálgama nacional de gente tola e touros dos quais pretendemos estar o mais afastados possível, assistindo ao triste espectáculo nas paredes mais altas?

quem não sente que este jornalismo do imediato tem revelado o mais básico nível de inteligência e a mais rasca educação literária e geográfica de alguns dos nossos jornalistas, para não falar da inexistente cultura em geral, fazendo-nos suspirar por aqueles dias em que a comunicação social era, efectivamente, um garante de qualidade e um baluarte de confiança e não esta triste tragicomédia mediática que não tem ponta por onde se pegue para lá da pega para a levar para o caixote do lixo?

quem não sente que a recente crise sísmica de são jorge é um assunto deveras preocupante e que o presidente do governo regional tomou a decisão correcta – pese embora tardia, para muitas pessoas – ao cancelar a sua viagem às comunidades para acompanhar de perto o evoluir da situação?

quem não sente também que ficou muito mal ao vice-presidente – lima azeda do cesto transformista do governo dos açores – alegar razões de saúde “complicadas” para tomar a mesma decisão: como se as pessoas não compreendessem que quem nos governa deve estar próximo das populações que os (não) elegeram para acompanhar e dar assistência, e que os nossos emigrantes o compreenderiam se assim o fosse dito?

quem não sente também que a novela amorosa da secretária da cultura e do director regional da cultura e a sua exoneração revelou o (des)governo regional dos açores no seu melhor, dando a conhecer uma secretária que exonera por email um director regional, com o presidente do governo a dar cobertura directa, com nota à comunicação social, para logo de seguida retirar a nota, uma tal lei dos 10 dias de pronúncia do padre que fez com que, em menos de duas semanas, o presidente do governo regional dos açores aceitasse uma exoneração a pedido da secretária da cultura por quebra de confiança política no director regional da cultura e dez dias depois aceitasse outra exoneração a pedido do director regional da cultura por vontade própria?

quem não sente que o presidente do governo regional foi tomado por tolo neste processo, mal assessorado juridicamente e fragilizado perante a opinião dos interessados pela cultura, enquanto o director regional da cultura saiu por cima da secretária, levado a ombros por uma comunicação social impressa que nem tão pouco se deu ao trabalho de ouvir contraditórios nem fazer o trabalho que lhe compete, limitando-se a publicar direitos de resposta e reimprimindo notas do governo?

quem não sente também que é absurdo e inédito o governo dos açores fazer o anúncio público dos apoios da cultura para 2023, quando os apoios previstos para 2022 não são conhecidos e a fase de candidatura decorreu em 2021, estando os agentes culturais dos açores sem resposta da direcção regional da cultura – resultado directo da incúria e falta de sensibilidade dos seus dirigentes – numa altura em que o primeiro trimestre já foi e não é possível projectar para lá de junho, tornando 2022 mais um ano perdido, desta vez não por causa da pandemia?

quem não se sente também é filho de boa gente, pode é não se interessar por estes sentires.