Opinião

Três Mitos e uma Dúvida

A questão das verbas europeias do Plano de Recuperação e Resiliência destinadas aos Açores tem vindo a suscitar vários comentários, de entre os quais se destacam alguns que, consciente ou inconscientemente, pretendem criar alguns mitos à volta deste assunto, ou, até mesmo, reescrever a história.
É, por isso, que volto ao tema, porventura abusando da paciência dos leitores, mas, em qualquer caso, na tentativa de corresponder àquele que julgo ser o meu dever de contribuir para o esclarecimento de tão importante assunto.

1º Mito - A diferença de 140 milhões de euros, entre os 720 milhões assumidos e os 580 milhões previstos, deveria ter sido tornada pública mais cedo, nomeadamente, em outubro.
Não é verdade!
Em outubro, estávamos no início do processo negocial relativo a essas verbas, e aquilo que tínhamos como dados objetivos era, por um lado, uma carta do Ministro do Planeamento, datada de 26 de agosto, dirigida ao Vice-Presidente do XII Governo dos Açores, a comprometer-se especificamente com os 720 milhões de euros, e, por outro, um documento global sobre o P.R.R., no qual esse compromisso não estava refletido.
Aquilo que o XII Governo Regional fez, foi aquilo que, nessa altura, deveria ter sido feito: questionar, diretamente, onde estavam os 140 milhões de euros em falta, exatamente, porque estando o processo negocial no início, havia tempo para esclarecer, clarificar, confrontar e reagir.
Acresce que, na minha opinião, nem este assunto, independentemente das cores partidárias de governos regionais ou de governos da República, deve ser tratado como se fosse uma conversa à mesa do café, nem o Governo Regional dos Açores deve prescindir da correção e dignidade institucional da sua posição, enquanto durar um processo negocial.
Mas não deixa de ser curioso verificar que a tentativa de construir ou consolidar esse mito, permite esconder outras questões: Os responsáveis pelo atual Governo dos Açores sabiam que estavam anunciados 720 milhões? Claro que sabiam! Tanto sabiam que até criticaram. Exemplo bastante são estas declarações do PSD/Açores, pela voz do seu candidato, a 20 de outubro, numa ação de campanha, depois de conhecida a existência de apenas 580 milhões de euros na versão do P.R.R. que havia sido tornada pública dias antes: "Um Governo do PSD será reivindicativo do reforço de verbas do Mecanismo de Recuperação e Resiliência para os Açores. O quadro anunciado pelo Governo da República é insuficiente, o que, estranhamente, merece apenas o silêncio do Governo Regional". E mais disse: "O Governo Regional anunciou que estavam previstos 720 milhões. Agora, o Governo da República disse que essa verba será de 580 milhões. Fica demonstrado que o Governo Regional está a perder capacidade negocial e o Governo de António Costa está de costas voltadas para os Açores".
Mas, então, uma vez chegados ao poder, o que fizeram? Nada! Nem abriram a boca.
O atual Governo sabia da carta do Ministro do Planeamento ao Vice-Presidente do XII Governo, datada de 26 de agosto, onde constava o compromisso dos 720 milhões? Claro que sabia! A carta está registada nos arquivos de correspondência recebida da Vice-Presidência do XII Governo Regional. Mas, então, o que fizeram? Nada!
A este propósito, não deixa de ser revelador e preocupante que o atual Governo Regional alegue o desconhecimento de outra carta, esta datada de 16 de outubro, que o então Vice-Presidente enviou ao Ministro do Planeamento a exigir o cumprimento do compromisso dos 720 milhões de euros destinados aos Açores no P.R.R.
Porque, mesmo que assim seja, essa alegação só vem demonstrar o desnorte e a inépcia no tratamento deste assunto.
Com efeito, invocar o desconhecimento dessa carta, só torna ainda mais injustificado e ainda mais incompreensível a passividade e o silêncio do atual Governo Regional neste assunto.
Então se sabiam do compromisso dos 720 milhões, se sabiam da versão pública do P.R.R. e que a mesma revelava a falta de 140 milhões, mas não sabiam que o anterior Governo Regional já havia reclamado essas verbas, não devia o XIII Governo ter reclamado mais cedo, não devia ter logo interpelado o Governo da República sobre o assunto?
Claro que devia! Aliás, como atrás recordei, afirmaram, expressamente, que o fariam.
Fizeram-no? Não.

2º Mito - O atual Governo Regional não alterou a parte referente aos Açores do Plano de Recuperação e Resiliência para não atrasar mais o documento.
Não é verdade!
O Plano de Recuperação e Resiliência esteve em consulta pública até ao passado dia 28 de fevereiro. Durante esse período, é claro que poderiam ter sido apresentadas alterações, aperfeiçoamento ou correções.
Para além disso, a versão definitiva do P.R.R. é entregue à Comissão Europeia neste início de março. Ora, se a parte referente aos Açores do P.R.R., tal como foi elaborada pelo anterior Governo Regional, padecia de tanto defeito, por que razão o atual Governo que, à data do fim do período de consulta pública, já levava mais de 90 dias de mandato, não disse nada?
A resposta só pode ser uma de duas: Ou concordou, e concorda, com aquelas que foram as medidas e iniciativas propostas pelo anterior Governo Regional, apesar do teatro da discordância; ou não teve, no mínimo, interesse em apresentar alternativas.
Em qualquer caso, a conclusão impõe-se: Se o Plano de Recuperação e Resiliência, na parte referente aos Açores, tem a configuração que tem, e permite os investimentos que permite, é porque o anterior Governo Regional apresentou as medidas concretas que apresentou, e o atual não apresentou qualquer alternativa.

3º Mito - As medidas referentes aos Açores foram decididas sem qualquer diálogo com os parceiros sociais ou com os partidos políticos.
Não é verdade!
Afirmar isso é esquecer tudo aquilo que foi feito no âmbito da construção da Agenda Açoriana para o Relançamento Económico e Social da Região Autónoma dos Açores, a qual foi assumida como a matriz das propostas dos Açores para o P.R.R.
Convém lembrar que essa agenda - que, entretanto, desapareceu de qualquer registo oficial on-line... -, foi, em maio de 2020, colocada a parecer dos parceiros sociais e dos partidos políticos. Em agosto do mesmo ano, foi colocada a consulta pública de toda a sociedade açoriana, tendo, só nessa última fase, recebido mais de uma centena de contributos.

A Dúvida: Qual o sentido de se assumirem os custos dos cabos submarinos com as verbas afetas aos Açores no Plano de Recuperação e Resiliência?
No humilde contributo que, no passado dia 1 de março, o atual Governo Regional dos Açores apresentou, no âmbito da consulta pública da versão final do Plano de Recuperação e Resiliência, consta do Ponto 5: "Imperativo de garantir o financiamento de cabos de fibra ótica, com uma configuração em anel, entre Portugal Continental, a Região Autónoma dos Açores e Região Autónoma da Madeira, designado por anel CAM".
Ora, colocado assunto no contexto em que o Governo Regional o coloca, nomeadamente, quando se fala de outras medidas dirigidas aos Açores, é imperativo perguntar por que razão se pretende imputar esse investimento às verbas afetas aos Açores no P.R.R.?
Mais estranho se torna esta pretensão do atual Governo Regional, quando no P.R.R. nacional não há qualquer referência a verbas para os cabos submarinos anel CAM, e, para além disso, a operacionalização deste assunto está entregue a uma entidade do Governo da República, a IP Telecom, SA, operador público de telecomunicações, e o financiamento está já assumido pelo Governo da República, quer através do recurso a fundos comunitários, quer sendo assumido pelo próprio Estado, na parte não comparticipável. Esta informação é pública, e consta do Despacho n.º 9333/2020, dos Secretários de Estado Adjunto e das Comunicações e das Infraestruturas, publicado em Diário da República, a 30 de setembro de 2020.
Convém, a este propósito, ter presente que este investimento está orçado em cerca de 120 milhões de euros.
Ora, as questões que aqui se levantam são, quanto a mim, claras e essenciais:
Se o financiamento e operacionalização estão assegurados, e em curso, por parte do Governo da República, por que razão quer o Governo Regional reabrir este assunto, no sentido de assumir esse custo?
O custo com este projeto, na forma como está referido no humilde contributo do Governo Regional dos Açores, do passado dia 1 de março, abrange a ligação "entre Portugal Continental, a Região Autónoma dos Açores e a Região Autónoma da Madeira, designado por CAM". Então os Açores é que vão pagar, com as verbas que lhes estão afetas no P.R.R., a ligação à Madeira? Porquê?
E mesmo que o Governo dos Açores diga agora que aquilo que quis dizer foi que, do P.R.R., apenas sairiam as verbas que cabem aos Açores, o facto é que o referido despacho não atribui nenhum encargo para a instalação dos cabos submarinos à Região Autónoma dos Açores!
Será que foi engano? Ou será que, mais uma vez, o atual Governo Regional dos Açores não conhecia o despacho sobre este assunto e que foi publicado há seis meses em Diário da República, sendo que está em funções há mais de 3 meses?
Ou será que se prepara o Governo Regional dos Açores para apregoar esse como um dos famigerados projetos de interesse comum?
O Governo da República encontra, desse modo, justificação para os 140 milhões de euros que, injustificadamente, reteve; o Governo Regional finge que recebe os benefícios de um suposto projeto de interesse comum que paga, mesmo sabendo que, através do despacho atrás referido, não tinha nada para pagar; e a Região Autónoma da Madeira fica com cabos submarinos à custa das verbas do P.R.R. destinadas aos Açores...
Pois é... Coincidências?!
Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay...