Opinião

A Constituição e a Saúde Pública

O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, através da meritíssima Juiz de instrução criminal de Ponta Delgada, apreciou e julgou uma providência extraordinária denominada como “habeas corpus”. No meu último texto referi, a respeito das diversas medidas tomadas na Região em prol da defesa da saúde pública, que não iria entrar em questões técnicas, mas a quantidade de constitucionalistas e especialistas em saúde por m2 que descobri existirem nos Açores fez-me mudar de ideias. Afinal de contas passei 5 anos da minha vida na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o que – modéstia à parte – me deu algumas ferramentas que possibilitam emitir opinião mais técnica. Desde logo, perceber o que significa a separação de poderes. A separação de poderes é a pedra basilar de qualquer Estado de Direito Democrático. Tal como a liberdade. Neste caso de expressão ou até de reação. Pode-se, dentro do respeito pelo sentido e efeitos de uma decisão judicial, discordar da interpretação legal ou constitucional. Pode-se, imagine-se, recorrer para os tribunais superiores de decisões judiciais. Esta é a dinâmica do Estado de Direito a funcionar. E foi isto que aconteceu no passado dia 16 de maio. Mas, se me permitem, voltemos atrás. O Governo dos Açores, ancorado nas posições da Autoridade de Saúde Regional, implementou as medidas que entendeu por adequadas, justas e proporcionais, para garantir a máxima salvaguarda da Saúde do Povo Açoriano. E é, precisamente, por aqui que gostaria de entrar no lado mais técnico. A definição de saúde, não sendo facilmente concretizável, surge, por exemplo, no Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (1946), que a caracteriza como “um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Seguidamente, importa ter presente que só com o advento do Estado Social, principalmente no pós II Guerra, é que se pode falar em saúde pública como valor objetivo, como riqueza coletiva (na feliz definição de J. MOREAU/D. TRUCHET, Droit de la Santé Publique), cujas proteção e promoção são assumidas como missões do Estado na nossa Constituição. Ora, é com base neste enquadramento que na Base I, da Lei 48/90, de 24 de Agosto (Lei de Bases da Saúde), se consagrou que “a proteção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade que se efetiva pela responsabilidade conjunta dos cidadãos, da comunidade e do Estado (...)”. Assim sendo, como escreveu J. J. GOMES CANOTILHO [Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998] “O bem saúde pública é, assim, reconhecido como um objeto valioso, digno de proteção jurídica e constitucionalmente garantido.” No entanto, o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores entendeu, face à notória colisão do bem jurídico “saúde pública” com outros direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, priorizar, sem mais, estes últimos. Mas havia outro caminho. Tal como defende VIEIRA DE ANDRADE, na análise de um conflito de direitos fundamentais - ou entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos -, a solução deve ser encontrada no quadro de unidade da Constituição, “tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes”. E na defesa da saúde pública não devia existir divergências. Tal como não devia ter existido entre o Estado e os Açores!