Opinião

Crónica massuda, mas com sentido

I. Numa obra que se tornou referência da Ciência Política contemporânea (“Civil Society and Political Theory”, 1994), Cohen e Arato procuram perceber porque é que o conceito de “sociedade civil”, recuperado pelas lutas democráticas no Leste Europeu, no final da década de 80 do século passado, e um pouco por toda a América Latina, também voltou em força ao léxico político das democracias consolidadas do Ocidente. Se é perfeitamente compreensível que quem combate regimes autoritários de pensamento único clame por um novo e estável sistema democrático, é muito menos evidente que as democracias capitalistas ocidentais, assentes no primado da lei, no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, num sistema de representação parlamentar e numa economia livre, voltem, depois do sucesso dos grandes movimentos democráticos dos séculos XVIII e XIX, a debater o que parecia ser um adquirido incontestável – a existência de uma sociedade civil sólida e eficaz. A resposta genérica dos autores aponta para uma ideia relativamente nova: o conceito de e o discurso sobre a sociedade civil não se esgota no processo faseado de implementação do regime democrático; depende também do tipo de sistema democrático que se implementa. Dito de outra forma, o significado e a função da sociedade civil varia consoante a forma como se organiza e se vive a democracia. A sociedade civil, sendo sempre resultado de um regime democrático, pode, portanto, ser mais ou menos institucionalizada, mais ou menos participativa, ou mais ou menos ativa. Como já tinha notado Tocqueville - aquele onde, quase invariavelmente, os politólogos vão parar-, o caráter democrático de uma determinada cultura política e das suas instituições mede-se, em boa medida, pelo grau de organização e de participação ativa dos cidadãos, com repercussão no processo coletivo de tomada de decisões. É este, pois, o contexto no qual reemerge no debate público o conceito e a função da sociedade civil mesmo para as democracias centenárias. II. Mas quererá isso dizer que estamos condenados a um confronto direto pelo exercício do poder entre o sistema político e as associações e movimentos cívicos, como se de alternativas se tratassem? Não, claramente que não, dizem os autores, para quem a dita sociedade civil não deve ser entendida como uma forma de participação cívica que deva substituir a estrutura institucional da democracia representativa, mas deve, antes, ser considerada como um motor indispensável da dinamização de uma sociedade democrática, complementando o sistema de competição entre partidos, trazendo novos assuntos e novas perspetivas para a esfera pública, organizando e dando consequência às diversas vozes não institucionais. Não se trata de opor sociedade e Estado, num confronto de soma zero, em que só um pode ganhar. Trata-se sim de assegurar um sistema eficaz de articulação entre a vertente institucional da democracia representativa e as formas mais ou menos organizadas de representação comunitária. III. A eficácia, neste caso, traduz-se pelas consequências e não está dependente da legitimidade de cada esfera de representação. Ou seja, a eleição em nome do interesse comum não pode ser substituída pela eleição em representação de um interesse particular ou de grupo. Mais, se juntarmos todos os elementos que, numa determinada sociedade, representam legitimamente os vários interesses setoriais ou individuais, não estaremos a assegurar uma legítima representação de todos. O que é necessário, numa democracia viva, ativa e saudável, é cada plano de participação cívica encontre as vias necessárias e consequentes de exercer o seu mandato. IV. O Presidente da Associação dos Canalizadores Unidos, por exemplo, votado em Assembleia Geral, representa legitimamente aquele setor de atividade, deve ver asseguradas todas as condições legais e institucionais para defender os interesses dos seus associados, deve participar e ser tido em conta nas decisões políticas e legislativas com consequências na área da canalização e afins, mas, para poder ser também representante legitimado do povo soberano, tem de concorrer e ser eleito em nome do interesse comum. Porque, nesse caso, é um cidadão e não o membro de uma corporação; porque, se assim for, é uma voz representativa do interesse geral de uma sociedade e não da sua classe profissional. Uma sociedade que não cria condições para que o Presidente de uma hipotética Associação de Canalizadores se faça ouvir, participe e possa ser consequente na defesa do seu setor não é democrática. Mas o que seria uma sociedade em que ser Presidente da Associação de Canalizadores conferisse a mesma legitimidade política que ser eleito pelo povo soberano para o representar?