Opinião

Salvai-nos do salvador

I. Mia Couto escreveu um dia que “salvar é uma grande palavra e que as grandes palavras escondem grandes enganos” e tinha razão. Salvar alguém ou alguma coisa é uma enorme responsabilidade e, regra geral, não é coisa com hora marcada e honras de aviso por outdoor. Salvar é coisa de herói, acontece, é momentânea, depende de um impulso movido a genética, coragem e uma certa dose de loucura. Salvar é do domínio do romântico, do milagroso, sem deixar de ser também pomposo e arrogante. Mas, quando se pretende salvar alguém ou algo que não precisa ou não deseja ser salvo, o ato que seria arrojado e notável, torna-se forçado e inglório, e às vezes mesmo, se acompanhado de uma estratégia de autopromoção do suposto herói, manhoso e mais característico dos espertalhões do que dos destemidos. A política não é terreno para salvadores. Faz-se de soluções negociadas, de reflexão, planeamento e ação empenhada. Precisa de ajustamentos, de melhorias. Implica erros e falhas. Os milagres são muito raros e quase nunca se sobrepõem ao esforço, à dedicação e à permanente disponibilidade para tentar fazer melhor. II. O deputado Duarte Freitas está disponível para salvar a Agricultura. Não o disse de viva voz e presencialmente, por exemplo, na abertura do Concurso da raça Holstein-Frísia, que decorreu recentemente nas instalações da Associação Agrícola de S. Miguel porque tinha estado, na véspera, a salvar a noite das marchas nas Sanjoaninas, em Angra - mas também, sejamos honestos, não se pode salvar tudo de uma só vez. “Di-lo” antes, em jeito de slogan, em cartazes espalhados pelas ilhas, convicto de que aqueles que fazem da sua vida uma dura jornada contínua de trabalho, no maneio do gado ou na preparação das terras e das colheitas, estão à espera de milagres ou se deixam levar por retrato em tela lustrada. Quem vive da lavoura sabe, talvez melhor que ninguém, o que é que custa governar a vida e viver do que se trabalha e do que se é capaz de produzir. Não está à espera que lhe apresentem declarações de heroicidade. Quer antes respeito, empenho e abnegação. III. Os produtores de leite dos Açores estão a atravessar um período particularmente difícil porque a União Europeia, de uma só vez e à distância, os penalizou duplamente, eliminando o sistema de quotas, que conferia estabilidade ao preço pago à produção, e impedindo a venda de leite e derivados para a Rússia, o que fez aumentar o leite disponível no mercado europeu e, consequentemente, baixar o respetivo preço por litro. Neste contexto complexo, os produtores dos Açores têm sido apoiados pelo Governo Regional, através de medidas adicionais que ascendem a cinco milhões de euros, valor superior ao dos apoios da própria UE. Em paralelo, e nas ocasiões próprias, junto das instâncias comunitárias e do próprio Comissário Europeu, o Presidente do Governo tem colocado a questão como ela deve ser entendida. Não há um problema de produção nem se podem desligar as vacas para que produzam menos. O problema é de escoamento e consumo, foi criado por decisões da UE que nada têm a ver com a lavoura açoriana e deve ser resolvido pela própria UE, que entretanto tem de compensar as dificuldades que criou. IV. Nada disto se resolve com milagres ou salvamentos. Nada disto tem a ver com três meses ou dez anos de Governo na Região. Nada disto depende de cartazes do deputado Duarte Freitas. A lavoura açoriana não precisa que a desmotivem, que instilem receio e incerteza, para depois lhe prometerem salvação com venda de produtos nos hipermercados. Precisa sim que a tratem com dignidade, confiança e respeito, acrescentando empenho e determinação política à força da justeza das suaspretensões.