Opinião

Resta a cuca

Na sala do meu avô músico cedo aprendi a trautear os primeiros acordes de “construção” do Chico Buarque, mesmo que ainda não suspeitasse da dureza da vida do operário que relatava. Ou me suspendia com o diálogo inquieto de “Sinal Fechado”entre Chico e Betânia. Enamorei-me pelo Brasil primeiro através da música, e depois pela feijoada da minha avó paterna. Ao longo da vida fui consolidando esta paixão. Por isso, hoje, o desencanto dói mais fundo, ao ver as ruas pejadas de gente que reclama o país para si. Voltado à pureza inicial que a paisagem natural emana e a pegada humana vem corrompendo. O povo exige o seu chão. Que o historial de corrupção mancha. E quase desde sempre. Atravessando muitas presidências, com os casos mais conhecidos durante os mandatos de José Sarney e de Color de Mello. Com a chegada dum operário metalúrgico ao poder a esperança renovava-se, e suspeitava-se que com Lula o percurso se inverteria. Mas Lula não cumpriu a esperança. E hoje é a mais jovem deceção do povo brasileiro. Tomou agora posse como ministro de Dilma, mas menos de uma hora depois a sua nomeação foi impugnada. Em 1993 Lula dizia que “há no congresso uma maioria de uns trezentos picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”. Qual boomerang a frase acerta-lhe hoje em cheio. O Brasil exige nas ruas a devolução da sua dignidade. O país da alegria tem este fado de tristeza. Da corrupção ser tida como um modo de vida. Depois de compridos anos de ditadura militar, a absoluta impossibilidade de endireitar o seu caminho. E de o manter limpo. No país em que tudo floresce e se anima a realidade do povo é feita de escuridão. A pobreza persiste em esferas insolúveis e a corrupção grassa. Levando todos, mesmo os mais insuspeitos, a ela aderirem. Envergonhando a política e defraudando o país. Que berra na rua porque, como cantava Chico Buarque, na escuridão da ditadura, “mesmo calado o peito, resta a cuca”.