Opinião

A outra narrativa

I. Até há cerca de seis meses o problema era o programa. Costa não tinha como escapar à necessidade de elaborar um conjunto de medidas e propostas quantificadas e muito bem fundamentadas, diziam os comentadores e analistas em coro, porque do outro lado estava uma maioria que governava para o cumprimento de um conjunto de metas muito definidas e (como tudo nestes tempos de ideologia da crise) inelutáveis. E António Costa rodeou-se de economistas reputados, cientificamente validados, e debitou um extenso e quantificado programa. Como seria expectável, tem sido vítima disso até hoje, esmiuçadas que foram até ao tutano todas as vírgulas e notas de rodapé do documento, enquanto do outro lado se falava apenas do que a realidade tinha obrigado a Coligação a fazer. Os comentadores e analistas ficaram relativamente satisfeitos até descobrirem que, afinal, o que faltava, muito para além da crueza dos números e do discurso em gráfico dos economistas, era uma narrativa (Todorov deve dar um grito de cada vez que o conceito é utilizado em contexto político). A Coligação tem uma história simples para contar, ao passo que o PS, que andou a perder tempo com medidas e propostas para governar no futuro o país, deveria era ter devotado todo o seu esforço a engendrar uma história para contar aos portugueses. II. Sem querer parecer pretensioso, vou arriscar a contar a história por que todos anseiam e que, segundo as senhoras e senhores que debitam juízos sobre a campanha eleitoral todos os dias nas nossas televisões, salvaria o PS. Não vou, contudo, dizer nada de novo, nada que não esteja em cada entrelinha, em cada pausa e em cada silêncio da história da Coligação. É uma história muito simples. 2011, Passos Coelho, que se vinha assumindo como oposição responsável, viabilizando os ditos Planos de Estabilidade e Crescimento, decide dizer “basta, porque este povo não aguenta mais austeridade”. Entra a Troika. Verão de 2011, eleições. Maioria de Direita, Coligação no poder. Passos Coelho, o mesmo que foi eleito em nome do fim da austeridade, diz-se manietado pelos credores internacionais e aplica doses cavalares de austeridade. Aumento brutal da carga fiscal, cortes bárbaros dos apoios sociais e violações grosseiras dos direitos contributivos. Emigração em massa, desemprego em alta, famílias em dificuldades, empresas a falir. Começa a notar-se, entretanto, um certo gosto em ir para além do acordado com os credores e uma propensão indisfarçável para apontar aos fundamentos do Estado Social. Educação, Saúde e Segurança Social assumem o topo da lista das áreas onde não é possível continuar a investir o mesmo. Em paralelo, quase tudo o que é público passa a estar à venda, rápido, ligeiro, sem grandes constrangimentos. III. Passados quatro anos, valeu a pena? Não, não valeu. O défice e a dívida, depois de tudo o que nos foi tirado a mais, continuam iguais ao tempo que a Coligação agora classifica de bancarrota. O desemprego é maior. O crescimento económico é menor que o da Grécia! A Segurança Social foi sangrada, recebendo de menos pessoas e tendo de acudir a mais famílias. O sacrifico serviu apenas para o Governo garantir o dinheiro aos credores internacionais, pouco dados a atrasos, e preparar o cenário eleitoral de 2015, este que agora vivemos. IV. É esta a outra narrativa. Não é sobre o medo de voltar atrás. É antes sobre o facto de nunca termos saído de lá, muitos e muitos sacrifícios depois. É sobre a esperança de mudar e conseguir. É sobre o receio de tentar. É a outra parte da história que nos andam a contar para que esqueçamos que somos nós que decidimos e que, como dizia Spartacus, “a nossa vontade é poder”.