Opinião

Autonomia com gente dentro

I. A reação dos partidos da oposição foi um indicador evidente, ainda que não necessariamente positivo, de que estávamos perante um discurso incómodo. Em vez de considerações abstratas sobre a necessidade de reformar ou de propostas redondas para a criação de grupos de reflexão sobre a necessidade de reformar – truques de uma certa oposição para liderar uma pretensa agenda reformista -, Vasco Cordeiro, no discurso do Dia da Região, nas Flores, disse concretamente o que considera prioritário que se faça para aperfeiçoar formal e substancialmente a Autonomia regional. Fê-lo do modo certo, no dia certo, na justa medida de quem também tem por obrigação, além do exercício do poder executivo, refletir de modo consequente sobre o futuro do sistema autonómico. Fê-lo para provocar um debate alargado e plural, mas com sentido prático e vontade de concretização. Fê-lo ainda com um assinalável espírito reformador, sem os atavismos que normalmente se associam ao poder e à vontade de o manter, e com o propósito mais digno: o de, aproveitando a latitude constitucional do nosso autogoverno, procurar melhorar a relação entre os cidadãos e o sistema político, bem como o grau e a eficácia da sua participação. II. Além da eliminação constitucional da “tutela desnecessária” que constitui a figura do Representante da República, o Presidente do Governo propôs a existência de listas de cidadãos independentes às eleições legislativas regionais, acompanhada da consagração do sistema de listas abertas, e a transformação dos conselhos de ilha em órgãos com competências executivas e legitimidade eleitoral. Se a extinção do cargo de Representante da República é a formalização atualizada de uma pretensão antiga, as propostas relativas ao sistema eleitoral, por seu turno,são um contributo destemido e inovador para dotar a sociedade civil de mais e melhores mecanismos de participação política. A possibilidade de concorrer a eleições à margem da influência dos partidos e a hipótese de os eleitores votarem não apenas num determinado partido mas, dentro da lista desse partido, também num candidato específico, constituem meios poderosos de reforço da ligação entre eleitos e eleitores e, bem assim, da voz de cada cidadão, que se torna mais audível e menos dependente da acústica do ecossistema partidário. Por outro lado, a alteração do estatuto e do leque de competências dos conselhos de ilha, fazendo-os participar no governo da própria ilha e tornando-os mais úteis às populações que servem, e, ao mesmo tempo, menos dedicados à promoção de interesses bairristas via parecer, é outro avanço assinalável para um sistema autonómico que tem na sua raiz a obrigação de fomentar a coesão entre parcelas tão distintas, sem deixar de atender às especificidades de cada uma delas. III. Instados a comentar, os partidos da Oposição ou não acham nada disto relevante, ou já tinham proposto o mesmo, ainda que ninguém tivesse dado por isso, ou então continuam a achar que a culpa de tudo, incluindo da necessidade de se repensar a Autonomia, é de Sócrates e do despesismo que está inscrito no ADN do Partido Socialista. Foram apanhados de surpresa e não foram capazes de reagir porque, apesar dos grupos de reflexão que criaram e das periódicas tiradas gongóricas sobre a qualidade da Autonomia, não têm pensamento estruturado sobre o assunto e ainda estão a fazer contas, em número de titulares de cargos políticos e chefias administrativas, para avaliar o que os pode prejudicar. Mas do que se trata mesmo é de procurar incrementar uma Autonomia que não seja meramente formal e institucional, feita de cargos, funções, partidos e leis, mas sem gente dentro, sem ligação às transformações e dinâmicas da própria sociedade civil, e sem responsabilidade cívica.