Opinião

Cântico de Ano Novo

Nota de Contexto: Esta crónica foi escrita naquele momento único do ano em que se enterra nas profundezas da psique tudo o que correu mal e se acredita, que seja apenas por uns segundos, que o tempo novo será tudo aquilo que desejarmos – não fora os efeitos das bolhas sobre a lucidez e teria mesmo sido escrita no embalo de um ou dois copos de champanhe. É um momento muito fugaz, mas também é bastante intenso. Por isso, se a achar demasiado otimista, fica desde já a justificação. I. Para que 2015 seja um ano de redenção, julgo que temos de começar por garantir que boa parte dos comentadores televisivos e radiofónicos serão substituídos por poetas e humoristas de qualidade. Viver a crise é difícil, senti-la no dia-a-dia é duro, mas vivê-la, senti-la e depois remoê-la todas as noites da semana através de figuras como “aquele senhor baixinho da SIC que percebe muito de Economia” ou “aqueles dois velhotes da TVI que foram ministros” ou ainda “o Camilo Lourenço” é do domínio do sobre-humano. É por isso que onde está um economista comentador, ou um político que agora é comentador especializado em economia, ou um jornalista que domina o jargão financeiro e se arroga a intérprete de economia para leigos – onde estiver uma dessas figuras, deve passar a estar um poeta ou um Ricardo Araújo Pereira. Não precisamos de ouvir dia sim dia sim senhor aqueles que sabem como se faz mas não fizeram ou os que fariam bem feito mas só lhes pagam para comentar. Precisamos, isso sim, de quem saiba reduzir a insensatez, a incompetência e uma certa dose de maldade, a um discurso que nos faça acreditar noutras possibilidades de seguirmos em frente. Começar de novo tem de ser começar de maneira diferente. Haverá sequer comparação entre ouvir o editor de economia de um dos canais generalistas a acusar-nos pela milésima vez de vivermos acima das nossas possibilidades ou ler Ricardo Araújo Pereira, na sua genial “Carta aos 19%”, quando escreve “Antigamente, estávamos todos a viver acima das nossas possibilidades. Agora estamos só a viver, o que aparentemente continua a estar acima das nossas possibilidades”?! Não há. Tal como não há paralelo entre o azedume de Medina Carreira, a rotular tudo o que mexe e fala de impreparado e pelo menos ligeiramente corrupto, e alguém a declamar-nos o “Cântico da Esperança”, do poeta indiano Rabindranath Tagore, onde se diz “Não deseje eu ansiosamente ser salvo, mas ter esperança para conquistar pacientemente a minha liberdade”. Que comentem os poetas e os humoristas! Está decretado o fim do comentário económico. II. Tenho, porém, consciência de que esta revolucionária medida é capaz de ser insuficiente para resolver de facto os problemas do país. Vai daí espero também sinceramente que 2015 marque o fim do passado. Sim, isso mesmo, do passado enquanto argumento de quem não sabe como procurar o futuro, daquele passado que se invoca de cada vez que se receia perder o controlo do presente. É preciso proibir o passado em nome da crença no futuro. 2015 começa com o que temos e deve ser dedicado a procurar o que queremos. O resto é passado e ficou lá atrás, julgado, morto e enterrado. Não tem mal nenhum termos falhado na vida que já vivemos. Mal será, pelo contrário, se continuarmos a achar que não somos capazes de fazer melhor porque falhámos, aqui ou ali, no passado. Essa é a base da penitência medieval, não é a raiz da democracia contemporânea. Em Democracia, o futuro constrói-se todos os dias e recomeça tantas vezes quantas as que quisermos. III. Não sei se terá sido muito óbvio, mas estes meus desejos para 2015 podem ser resumidos ao fim da governação liberal/conservadora (e do respetivo séquito de narradores, anotadores e analistas) que nos tem consumido a vontade de sermos capazes de fazer melhor e a esperança de o conseguirmos. É só isso e já não é pouco.