Opinião

Confusão minha...

I. Sou deputado regional em exclusividade de funções, o que significa que não recebo qualquer outro salário ou remuneração de trabalho. Ganho o que está estabelecido legalmente e que é muito mais do que o ordenado mínimo mas também muito menos do que ganham, para funções de idêntica responsabilidade, os que trabalham no setor privado. Não me queixo, obviamente, mas também não tenho vergonha de assumir. Se me acusassem de ter recebido um salário de uma empresa privada, de forma reiterada, violando, assim, a lei, eu revirava este mundo e o outro para demonstrar fundamentada e documentalmente que isso não era verdade. E só descansava quando a acusação de que era alvo se transformasse em pura má vontade do acusador. Lamento, por isso, que a amnésia, primeiro, e a falsa transparência, depois, do Senhor Primeiro-Ministro contribuam para alimentar o desporto nacional de desancar indiscriminadamente na política e nos políticos. II. O Primeiro-Ministro começou por não fazer questão de se lembrar e acabou por fazer questão de proclamar a sua seriedade. O caso nem é de grande complexidade. Enquanto exercia o seu mandato em regime de exclusividade, o então deputado Passos Coelho teria recebido remunerações constantes e de monta de uma empresa do setor da formação profissional. Verdade ou mentira, Senhor Primeiro-Ministro? Primeira resposta: “Não me recordo”. Por ter sido entre 1996 e 1999, Passos Coelho não tinha presente o tipo de relacionamento profissional que teria mantido com a empresa, nem se recordava com exatidão ao abrigo de que regime teria exercido o seu mandato. Perante o avolumar de novos dados na imprensa diária e o aumento da pressão política, o Senhor Primeiro-Ministro sentiu necessidade de ir abrir os dossiês da sua contabilidade pessoal e consultar a papelada guardada lá em casa. Dirige-se então ao Parlamento e diz, basicamente e para resumirmos, “Eu sou um homem remediado e sério!”. Não interessa muito se estava ou não em exclusividade, ainda que estivesse, porque nunca trabalhou para a Tecnoforma. Era apenas um consultor gracioso do Centro Português para a Cooperação, organização não governamental fundada e financiada pelos proprietários da Tecnoforma. Recebeu apenas despesas de representação contra recibos referentes a viagens, jantares e alojamentos. Não se recorda do valor global, nem apresentou qualquer comprovativo. Não tem património acumulado, não tem bens em nome da família, está a pagar um crédito à habitação. É um homem sério. Aplausos da bancada do PSD e vamos então tomar um cafezinho… III. A Tecnoforma ganhou diversos concursos ao abrigo do programa Foral – de formação profissional para funcionários autárquicos – na altura em que Miguel Relvas era Secretário de Estado da Administração Local e, por via disso, tutela do dito programa. A mesma empresa partilhava a sua sede, os seus administradores e o seu dinheiro com o tal Centro Português para a Cooperação, que tem entre os seus fundadores, além do próprio Passos Coelho, a sua atual assessora de imprensa, Eva Cabral, Vasco Rato, atual Presidente da Fundação Luso-Americana designado por Passos Coelho, o sempre presente Marques Mendes e Ângelo Correia, patrão e mentor político de Passos Coelho. Entre 2002 e 2007, Passos Coelho foi primeiro consultor e depois administrador da Tecnoforma. Colocado perante o facto de ter dito publicamente que tinha saído da empresa em 2004, respondeu à imprensa: ”Confusão minha! Pensava que tinha saído em 2004”. Um homem sério e rigoroso, que exige dos outros aquilo que pratica, não tem tão má memória, nem pactua com dúvidas sobre a sua honorabilidade. A política não é feita por anjos, mas também não pode ser império de desmemoriados.