Opinião

a matroska da normalização

presentemente, o termo “matroska” pode usar-se para referência a três realidades completamente diferentes entre si: uma informática, uma cultural, e outra conotativa.

a mais recente, do campo informático, designa um envelope de ficheiro de áudio/vídeo, de extensão popular “mkv”, o qual permite o armazenamento de vídeo e áudio de alta qualidade, juntamente com as respectivas legendas, tornando-se um “recipiente” digital de grande versatilidade e utilidade.

no campo cultural, refere-se à etimologia da palavra per se, característica cultural, que designa aquelas bonecas típicas russas colocadas umas dentro das outras, ou seja, uma boneca maior contém dentro de si uma menor que, por sua vez, contém uma outra ainda menor dentro de si, num sucessivo descobrir de novas bonecas dentro umas das outras. também designada de “matrioska”.

a conotativa, de origem obscura, parece uma derivação com base nesta ideia de contínua surpresa, em que não se sabe o que está verdadeiramente contido dentro de algo, como se houvesse um engano, uma intenção escondida, fazendo com que o termo “cheira-me a marosca” fosse sinónimo de algo errado, de engano, como um plano escondido feito para enganar o interlocutor.

matroska de vídeo: as imagens de bruno de carvalho a ser abusivo e agressivo para com a sua boneca morena no big brother dos famosos. ao que parece, o antigo presidente do sporting é um namorado abusivo, que inflige violência sobre a sua rapariga, ao estilo daquelas relações tóxicas sobre as quais as campanhas anti-violência-no-namoro tanto alertam os nossos jovens.

nada de novo, para quem acompanhou, mesmo que de longe, a saga bruno de carvalho no sporting: a ascensão de um egoísta megalómano, a sua manutenção como déspota abusivo e de difícil contraditório, e a sua queda como persona non grata para sempre a ser esquecida dos anais sportinguistas – pelos mesmos que o carregaram em ombros por ele ser “fora do sistema”, “dizer aquilo que mais ninguém diz” e “vir para endireitar de vez as coisas”. viu-se. acabou no restolho de um programa fatela, de gente que se auto intitula de “famosas”, sem que a maioria das pessoas as conheça, e apresentada pela mais recente coqueluche portuguesa – a tal cristina ferreira, de pobre a milionária, dona e senhora da tvi e do entretenimento boçal em portugal.

ao que parece, a cristina ferreira, a tal que escreveu o livro “pra cima de puta” para denunciar as ameaças de que foi vítima e as palavras abusivas e ofensivas com que a presentearam os seus fãs, conhecidos e, quiçá, ex-namorados – se os teve, não viu nada de mal nessa relação abusiva. a mesma cristina ferreira que andou a publicitar histericamente o seu livro “pra cima de puta”, como se o termo “puta” no título fosse algo de novidade desde que o miguel esteves cardoso lançou “o amor é fodido” ou “como é linda a puta da vida”, querendo “dar um murro no estômago” da sociedade adormecida e normalizada pelo abuso sobre as mulheres.

essa mesma cristina ferreira, que agora se apresenta como a substituta da badalhoca, ou a badalhoca substituta, da teresa guilherme, afinal acha que não há nada de mal num homem agarrar o pescoço da mulher (se calhar até é a “sua” mulher) para que ela o oiça melhor. essa estúpida versão de self-made-woman afinal até entende que a televisão não tem que educar – tem que entreter – e que o que o bruno de carvalho fez é perfeitamente normal. que é o mesmo que dizer: desde que haja audiências, siga para karaoke que eu me estou a cagar.

eu sei que o big brother dos famosos pouco difere do big brother dos zés marias pobres. nunca gostei da premissa do programa original – se calhar, por defeito de ter lido orwell muito cedo – nem do frenesim social que provocou. aliás, se nos lembramos, o primeiro big brother normalizou o pontapé do marco na marta, como se resolver problemas ao pontapé fosse uma legítima forma de se tratar das coisas. acabamos por colher, mais cedo ou mais tarde, aquilo que semeamos. não haja disso dúvidas.

mas o problema é a imagem que se passa aos mais novos. àqueles que consomem estas coisas nos seus tiktoks, nos instagrams, nos discords, whatsapps e demais. não no facebook, que esse é para gente mais velha, mais fatela. àqueles que consomem estas coisas até acharem normal que um homem abuse da “sua” mulher se assim quiser, até acharem que ela até mereceu que ele se “passasse da cabeça” ou que lhe “saltasse a tampa”. porque é isso que se vê, monkey see, monkey do, já cantava kurt cobain.

pode até nem ser, na realidade, mas parece que é: ao pontapé e aos apertos no pescoço. mais umas chapadas na cara daquelas badalhocas e o quadro fica completo. depois, não percebemos bem por que há tanta violência no namoro e por que os nossos jovens acham normal que se distribuam umas bolachadas de vez em quando, especialmente quando as gajas se portam mal e precisam de uma chamada de atenção para atinarem, que isto de se fazerem desentendidas, não atenderem o telemóvel nem deixarem que um gajo leia as mensagens que trocam com outros não está com nada.

temos o que merecemos, sem dúvida. e a nossa televisão “privada” mas disponível em canal aberto como se de uma televisão nacional se tratasse dá-nos exactamente o que merecemos: uma matroska normalizada de violência no namoro e uma pindérica histérica que lava as mãos como pilates e segue para bingo como a teresa guilherme e o seu “isso agora não interessa nada”.

enquanto termino este artigo, a mãe de todas as matroskas acaba de invadir a ucrânia. e também aqui convém não normalizar: não normalizar a mentira abjecta e reiterada de um líder que andou a enganar meio mundo sobre as suas verdadeiras intenções; não normalizar o desrespeito pela soberania das nações e pela autodeterminação dos povos, mesmo quando tais não seguem o paradigma expectável do império; não normalizar a guerra, em sentido lato, particularmente no mundo ocidental, globalizado e contemporâneo que é a europa.

não normalizar é também repudiar não só o que está a ser perpetrado pela rússia e pelo seu líder-fantoche putin, mas também o apoio que o partido comunista português dá a esta situação, plasmado na referência directa dos seus dirigentes e na indirecta dos seus parceiros, como o bloco de esquerda e a mariana mortágua, quando dizem que a ucrânia também há-de ter feito algumas coisas para a rússia agir desta forma.

que é parecido a dizer que as mulheres, quando levam nas fuças, alguma coisa hão de ter feito. nem sempre, é certo, mas às vezes, lá de vez em quando, levam porque merecem.

repudie-se estas falsas moralistas. todas, sem excepção.