Opinião

Batendo as asas pela noite calada

Quando, há cerca de um mês e meio, a convite do Joel Neto, assinei a Carta Aberta dos Escritores de Língua Portuguesa contra o racismo, a xenofobia e o populismo – ou quando, numa das últimas intervenções que realizei na Assembleia Legislativa Regional, enquanto Deputada pelo Partido Socialista, afirmei, neste mesmo contexto, que palavras daquelas não podiam caber no dicionário democrático –, não imaginava o que aí vinha.

Não supunha, por um instante, que poucas semanas depois estivéssemos a viver um dos episódios mais inacreditáveis da nossa História: a eleição de dois deputados do Chega e o maior partido da oposição a querer chegá-los para si, aproximando a nobre Social Democracia de uma extrema direita ignóbil, fascista, voraz, autoritária, homofóbica e xenófoba, que quer extinguir a Escola e a Saúde Públicas e aniquilar o Estado Social, acabar com sindicatos, com organizações feministas e até com a participação de Portugal na ONU, que defende a prisão perpétua e referenda internamente a pena de morte, que alimenta o discurso do ódio e da vingança. Este é o Chega a que o PSD está disposto, de uma forma ou de outra, a dar a mão. Formar governo não pode colocar Direitos, Liberdades e Garantias a saque. Liderar os destinos da Região não pode valer esta despudorada conivência. A verdadeira Social Democracia, que muito respeito, não merecia esta malvadeza. E os Açores muito menos.

Nasci em 1977. Não conheci a Ditadura. Cresci em Liberdade, a ouvir Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e José Mário Branco, na certeza tranquila de que, findos os discos, os colocaríamos de novo na estante, pois as suas vozes podiam e mereciam descansar. A manhã era nossa, e era clara, e era limpa.
Enganei-me. Afinal, Os Vampiros estão mais perto do que eu imaginava. Num piscar de olhos, “vêm em bandos, com pés de veludo / chupar o sangue fresco da manada”. Se, como Povo, não formos capazes de os ouvir chegar pela noitinha e de lhes trancar a porta, creio cada vez mais evidente (e assustador) que o hediondo tempo dos “senhores à força, mandadores sem lei” não tardará a regressar.