Opinião

Obituário ma non troppo

I. Escrever obituários políticos é um risco enorme, porque, ao contrário do que acontece na vida civil, em política pode morrer-se em vida ou, então, sobreviver-se à morte, se me permitem o contrassenso. Marx, por exemplo, morreu em 1883 e lá por isso não deixa de continuar bem vivo(vou excusar-me de dar um exemplo de sentido inverso). Cavaco Silva sai hoje de cena, depois de duas décadas de exercício dos mais altos cargos políticos em Portugal. O meu coração, exultante com o fim de carreira de um político que representa quase tudo o que eu não quero para o meu país, desejava que fosse de vez, mas a minha razão diz-me que, infelizmente, Cavaco, por incorporar uma certa ideia bem portuguesa de conceber o exercício do poder, é bem capaz de sobreviver politicamente. Dito de outro modo, o Cavaquismo, que é anterior à rodagem do Citrôen na Figueira da Foz, não morre necessariamente com o final dos seus mandatos presidenciais. II. Cavaco fez-se político contra a política. Depois de décadas de pura politiquice, cheias de controvérsias, enredos partidários, jogos de bastidores, táticas e estratégias, continua a definir-se como um académico que dedicou parte da sua vida à atividade política, em vez de se assumir como um político (quase) profissional que veio do mundo académico. A diferença é que a máscara de professor universitário o coloca ao lado dos portugueses (ainda que convenientemente acima), contra os aproveitadores dos políticos, enquanto a condição de profissional da política o colocaria contra os portugueses, proverbialmente desconfiados de tudo quanto seja atividade profissional paga por via do erário público. Por outro lado, o estatuto que estabeleceu para a sua personagem política acentua o caráter paternalista do líder, de que os portugueses tanto gostam. Duro mas condescendente, definindo padrões morais e apelando à resiliência, confortando, sem admitir, contudo, indignações. Um pai à moda antiga, que nos guia do cimo da sua moral feita de convicção e sentido de responsabilidade. Este tipo de líder é mais do que Cavaco, o homem político, é um arquétipo do sentir português, que já justificou muitos dos períodos negros da história deste país de deslumbramentos resignados. Mas em Cavaco houve sempre também a superioridade técnica do homem das contas, que ainda por cima se fez à sua custa (e dos sacrifícios da família) e que, como tal, só pode ser, aos olhos dos portugueses, um iluminado disposto a partilhar sabedoria em prol do nosso sucesso coletivo. Começou com Cavaco Silva, pelo menos ao nível da fundamentação do discurso político, a deriva liberal do PPD pós Sá Carneiro. Muitos dirão – com razão – que os seus governos foram profundamente keinesianos, transformando as obras públicas no motor (artificial) de uma economia que nunca chegou a sê-lo, mas esse foi um resultado das circunstâncias e do contexto europeu, não uma opção político-ideológica. Basta ler na diagonal os discursos de Cavaco enquanto Presidente da República para se perceber que por detrás do Primeiro-Ministro esteve sempre um economista liberal, disposto a contrapor as virtualidades do mercado aos imperativos de ordem social. Os Açorianos, por seu turno, sempre souberam que Cavaco Silva não percebia a sua condição e não reconhecia a razão e os méritos da causa autonomista, e, mesmo assim, concederam-lhe sucessivas vitórias eleitorais, sentindo-o necessário na gestão do país e, ao mesmo tempo, convenientemente distante e suficientemente obrigado, pela Constituição e pela Lei, a suportar as instituições da Autonomia. III. É por tudo isto que não consigo ter a certeza que hoje se possa assinalar o fim do legado de Cavaco Silva. Do homem político já nos livrámos, mas será que nos conseguimos livrar daquilo que ele representa?